quinta-feira, 23 de julho de 2009

Mudança

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades
Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.
Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.
O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.
E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.


Luís de Camões

Dobrada à moda do Porto

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Um dia, num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.
Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.
Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo ...
(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje).
Sei isso muitas vezes,
Mas, se eu pedi amor, porque é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio,
Nunca se pode comer frio, mas veio frio.


Álvaro de Campos

quarta-feira, 8 de julho de 2009

Fenemê Roncador


Um ronco surdo e teimoso
cortou em dois o silêncio
e desmanchou a noite vazia.
Devagar seguia, que ruído fazia!
A estrada, coitada, como sofria.

Lá vem subindo, o roncador na colina,
esfumaçando e esbravejando.
É carga pesada, mas não bate pino.
Trocou de marcha. Ufa! Quase não suporta.
Folgou...Lá vem ele descendo com toda corda.

Eu, deitado e insone, ouço
a passagem do colosso,
o valente caminhão Fenemê.
Êta, incansável desbravador
das lonjuras, segue como trator.

Lá vai, o trovão das estradas
com seu caminhoneiro,
enfrenta mais uma subida,
deixa pra trás, já sumida,
minha Caçapava esquecida.

Do Oiapoque ao Chuí, só paro para fazer xixi